Vou começar pelo fim.
A minha última viagem foi a Veneza. A primeira a Itália e àquela cidade que de tão diferente, nos confunde. Ora se apresenta decadente e enigmática como exuberante e grandiosa.
“Veneza é uma cidade única, a mais inverosímil das cidades", dizia Thomas Mann. Pude confirmá-lo in loco enquanto a percorri. Registei as minhas impressões, as quais quero aqui partilhar, homenageando a singularidade desta cidade que será para sempre uma das minhas eleitas.
“Estamos no inicio de Dezembro quando chego à estação ferroviária de Santa Lucia, vinda de Milão. A noite já brilha sobre a água dos canais e somente o movimento, sempre intenso, desta cidade de todos os tempos, deixa perceber que tenho à minha frente um destino único. Os sons impressionam-me. Deixei de ouvir o ruído dos carros que sempre povoam as cidades. Restam os barcos e os passos contínuos pelas ruas estreitas e sombrias. À noite falta-lhe luz, e o mistério adensa-se. Por entre os prédios desabitados parecem vaguear damas e mercadores ricos, que acabaram de sair ás escondidas de uma das lojas de máscaras que abundam pela cidade. Vão a um baile de Carnaval num Palácio debruçado sobre o Grande Canal. Vão de Gôndola por certo.
Deixo-os para trás e sigo por entre pequenas pontes que me levam a pequenas praças, denominadas “campo”(pracetas), e campielli ( pracetas de menor dimensão) , muitas delas com igrejas enormes, de tijolo alaranjado ou de mármore imaculadamente trabalhado pelos grandes mestres do Renascimento. Todas elas possuem um poço ou dois, ao centro, que serviam para abastecer a cidade de água potável até ao séc. XIX.
A noite acalmou a multidão, muitas das ruas estão já desertas. E chego à praça de São Marcos. Faltam-me as palavras e penso nas de Napoleão e em como tinha razão ao afirmar que “A praça de São Marcos é a mais bela sala de visitas da Europa” .
Sinto um frio agradável a bater-me no rosto e volto a olhar em meu redor. Tudo parece magnifico. Uma leve neblina brota da Lagoa, conferindo ao cenário uma aura mágica. Tenho a sensação de estar a percorrer um outro tempo, mas este meu estado de letargia é subitamente interrompido pela música afinada de um violino, tocado por um empregado do Florian, o mais antigo café veneziano, situado numa das galerias da praça.
Está na hora de a deixar.Tal como eu, precisa de descansar. O dia vai longo, outro virá e com ele muita azáfama. A Bella Piazza consciente da sua beleza, sabe que tem de estar apresentável para receber condignamente os convidados que virão.
Retomo o caminho de volta para o Hotel Arlecchino, onde ficarei as duas noites de Veneza. Um hotel simples mas confortável no Sestieri (bairro) Santa Cruz. O quarto dá para o Grande Canal e a paisagem que dele se avista é o postal típico de Veneza. As casas em tons ocre, com janelas compridas, elevam-se em altura, mergulhadas nos canais e sobre as salizzade (ruelas calcetadas) e as calli (ruas pequenas junto aos canais). Espanta-me como se aguentam sobre a água e descubro que toda a cidade composta por 400 pontes e 118 ilhotas, foi consolidada com uma densa série de grossos troncos de árvore sobre os quais assentam as respectivas fundações. Um trabalho de Homens que receberam com toda a certeza inspiração e bênção divina.
Já é dia.
Bairro Santa Croce
Depois de um agradável pequeno almoço, sinto aquela paz que sempre me invade quando estou em viagem. Uma liberdade plena de seguir o rumo que entender, de me perder e reencontrar, no meio do nada ou de tudo. Saber que me esperam momentos de pleno êxtase ou de conformadas desilusões, e que o prazer de deambular não será interrompido por um qualquer afazer rotineiro.
Dirijo-me mais uma vez na direcção do Rialto. Apanho o Vaporetto até lá. Pelo caminho observo a beleza que a luz confere ás fachadas dos edifícios. É uma cidade mais alegre, a que vejo pela manhã.
Igreja de Santa Maria de Nazaré inclinada por causa da sua construção sobre a água, tal como sucede a muitos outros edifícios de Veneza.
Enquanto o vaporetto desliza por entre as águas turquesa do Grande Canal, vão-se sucedendo magníficos palácios. O Palácio Corner Contarini, o Cá Pesaro , o Corner della Regina, o palacio Ca’d’Oro que guarda uma bela colecção de arte e muitos outros que são um verdadeiro deleite para o olhar.
Palácios e Casas do Grande Canal
Desço junto à ponte do Rialto. Atravesso-a e posso comprovar que o comércio em Veneza continua vivo. Se em tempos foi o responsável pela sua prosperidade, hoje não o é menos. As lojas sobre a ponte vendem na sua maior parte desinteresses turísticos. Mas algumas optam pelo verdadeiro artesanato da região e apresentam magnificas peças de vidro de Murano, uma outra ilha da Lagoa, enigmáticas máscaras venezianas, rendas e tapeçarias Ponte do Rialto
Rialto
Atravesso a ponte em direcção à Lota, o mercado de peixe que ai funciona há seis séculos.A sua função não a destitui de charme e foi contemplada com uma fachada semelhante à de um belo palácio, só que no seu interior amplo, vende-se peixe, trazido em pequenos barcos desde o Adriático e da Laguna. São sargos, robalos,enguias, linguados, chocos, crustáceos, mariscos, prontos a serem confeccionados em convidativos pratos tipicos da gastronomia do Véneto, como o famoso “spaghetti alle vongole”, feito com amêijoas ou berbigão, as “anguille in Umido”, enguias estufadas ou o “Risotto alle Seppie”, arroz com tinta de choco.
Ao lado da Pescheria, situa-se a Erberia, o mercado de frutas e legumes, composto por pequenas bancas coloridas voltadas para o canal à espera dos compradores que podem vir pomposamente numa das gôndolas que efectuam um serviço rápido entre as duas margens do canal, as “traghetto". Compro uvas moscatel e lavo-as numa fonte antiquíssima, gasta pelo tempo ao serviço dos vendedores. Os venezianos orgulham-se de poder beber as águas límpidas e frescas das suas fontes.
Os deliciosos bagos de uva acompanham-me pelas ruas labirínticas que me conduzem a passagens estreitas e obscuras, abertas entre as habitações, as “sottoporteghi”. Aí Veneza é verdadeira, calma, melancólica, perdida no tempo. As paredes mal cuidadas de alguns prédios e palácios, os recantos improváveis,as pequenas pontes sobre canais igualmente diminutos, os raros jardins de pátios escondidos dos olhares dos turistas, aparecem-me sem pudor. E continuo seguindo as indicações que um pouco por todo lado nos guiam a São Marcos, Rialto, Vaporetto ou Estação Ferroviária.
Chego pela segunda vez a São Marcos e um elegante e imenso salão abre-se de repente à minha frente. A praça está rodeada por três lados repletos de edifícios do século XVIII de uma magnífica beleza arquitectónica e num último lado pela Basílica de São Marcos e o Palácio Ducal ou dos Doges. Este último um imponente edifício onde se situava o governo da República Veneziana cujo chefe tinha o nome de “Doge” (derivação do latino “dux”, guia). Nesta altura do ano não se registam filas para o visitar o que me leva a tomar a decisão de o fazer. Já no interior passamos parte da visita de cabeça erguida ao céu que se consubstancia em tectos indescritíveis, com enormes pinturas de Tintoretto, Tiziano, Veronese entre outros. Viajamos da opulência para a frieza do triste edifício da prisão, conhecida por “dei Piombi”, que está unida ao Palácio Ducal pela Ponte “dei Sospiri”, cujo nome deriva dos suspiros dos presos que a atravessavam após a decisão do tribunal.
Praça de São Marcos
Ainda tenho tempo para me dedicar à Basílica. Construída entre 1043 e 1071 foi acrescentada e decorada ao longo do tempo, sendo o símbolo perfeito do estilo bizantino, gótico, islâmico e renascentista. A fachada possui cinco varandas em mármore, mosaicos e esculturas.O seu interior obedece ao esquema das igrejas bizantinas. Desde os altares aos tectos, tudo reflecte o brilho intenso do ouro. Nela sinto aquilo que Veneza foi. Um local com um pé no Oriente e outro no Ocidente, ponto de partida e chegada de ricas mercadorias nunca vistas e muito desejadas, cruzamento de culturas e credos.
Interior da Basílica de são Marcos
Vista da Ilha de São Jorge Maior
Saio da monumental basílica e deparo-me com o alto Campanário e o pórtico que o suporta, profuso em decorativas estátuas. Semelhante a outros que se vão vendo no horizonte, este olha de cima todos os que passam na praça e alcança-nos até desaparecemos novamente no labiríntico casario.
Campanário da Praça de São Marcos
Casario de Veneza junto ao Grande Canal
Paro numa pizzaria de rua e delicio-me com uma das mais saborosas fatias de pizza que comi até hoje. Afinal não é só fama, temos realmente o proveito. Mais à frente numa rua de galerias de arte e antiguidades, um aroma intenso a café aquece a atmosfera. Entro e saboreio o verdadeiro expresso italiano servido pelo dono do minúsculo café, um antigo veneziano que conhece Portugal e que me aconselha a acompanhar tão revigorante bebida com uma fatia de sbrisolona caseira, uma tarte que faz lembrar um biscoito gigante, com amêndoa, aromatizada com anis. Saio eternamente agradecida.
Ainda passeio pela zona da Alfandega, uma espécie de términus do centro de Veneza. Sento-me em frente à igreja de Santa Maria da Saúde e surpreendo-me com a sua construção. Um milhão de pilares de madeira suportam-na. Mais um trabalho hercúleo como todo aquele que criou esta terra de sonhos. Passo pelo Museu Peggy Guggenheim. Vou em direcção às Galerias da Academia, que guardam a maior colecção de pintura Veneziana do mundo. Sigo pela Ponte da Academia, contemplo o Palácio Cavalli Franchetti, continuo pelo campo San Stefano, a igreja San Stefano, a igreja Santa Maria Gloriosa dei Frari com obras primas de Ticiano, Bellini e Donatello, o Teatro La Fenice e muito, muito mais.
Alfandega – Igreja Sta. Maria de la Salute
Parte final do Grande Canal
Pátios no cimo dos prédios, devido à falta de espaço.
Seria impossível descrever tudo o que absorvi em três dias de Veneza. Este é só um pequeno relato dessa vivência fugaz que me deixa melancólica na hora da despedida. Podem dizer que Veneza está decadente, com demasiados turistas , suja, que os canais cheiram mal, talvez isso aconteça no Verão. No inicio de Dezembro não. Por isso quero voltar, em Dezembro, um dia, quem sabe?
“Construída sobre as águas, pairando acima do bem e do mal, a realidade da antiga República Sereníssima ultrapassa a capacidade imaginativa do sonhador mais fantasioso", Charles Dickens sobre Veneza.
Informações úteis ao viajante:
Turismo:
http://www.comune.venezia.it/flex/cm/pages/ServeBLOB.php/L/EN/IDPagina/1
http://www.veniceconnected.com/
Comer:
Gelataria Palolin, fica no Campo Santo Stefano
Pizzas nas pequenas lojas de rua (3 euros cada)
Harry's Bar-http://www.cipriani.com/locations/venice/restaurants/harrys-bar.php
Café Florian
Da Silvio – Calle San Pantalon 3748 (15/20 € por pessoa)
Dormir:
http://www.hotelarlecchino.com/
http://www.accorhotels.com/gb/hotel-1313-papadopoli-venezia-m-label-former-sofitel/index.shtml
http://www.alsolehotels.com/en/index.htm
http://www.sangiorgiovenice.com/
Visitar:
http://www.venice-museum.com/index.htm
Transportes:
Vaporetto: http://www.actv.it/navigazione.php?pagina=tariffe_vaporetto (60m-6.5€, 12 horas-13€, 48h-25€,72h-30€)
Gôndolas: cerca de 80 € por 40 minutos- http://www.partner.viator.com/en/4464/Venice-Tours/Cruises-Sailing-and-Water-Tours/d522-g3
Gôndolas de serviço rápido entre duas margens de um canal ( 50 cêntimos-1minuto). http://europeforvisitors.com/venice/articles/traghetto.htm
Comboio: Milão-Veneza- http://www.trenitalia.com/en/index.html
Avião: Aeroporto Marco Polo- Veneza-http://www.flytap.com/Portugal/pt/Homepage
Aeroporto de Malpensa- Milão- http://www.easyjet.com/asp/PT/Reservar/index.asp
Ler:
The secret Venice of Corto Maltese – Hugo Pratt
Morte em Veneza – Thomas Mann
Marca d’ Água –Joseph Brodsky
Cavaleiro da Dinamarca – Sophia de Mello Breyner
Guia American Express veneza
Menina, já virei seguidora! Adoro viajar e etive em Veneza em outubro de 2008. A Ponte dos Suspiros ainda está em reforma? Que pena!
ResponderEliminarAcabo de ler no blog da Neyma (Vó Mindoca) sobre a viagem que ela fez à Veneza e também realizou um sonho, tal como eu e você.
Sua descrição poética faz jus à essa encantadora cidade.
Bjs.
Parece que decidiram ir todos a Veneza e eu também quero :)
ResponderEliminarÉ, sem dúvida alguma, uma cidade fantástica que eu quero conhecer um dia destes!
Nossa...suas fotos estão hipinotizantes de tão lindas e perfeitas e o texto recheadissimo de informações uteis, parabéns mesmo!!!Já somos sua seguidora...
ResponderEliminarbjs
www.viagemafora.blogspot.com
Lindas fotos de uma cidade única!Quando voltar lá vá no Carnaval...
ResponderEliminarParabéns pelo texto!
Bjs
Ps:obrigado por me ter colocado nos seus Blogs favoritos!
Veneza é puro encanto. Que cidade mágica. Preciso voltar lá. Fiquei nostálgica.
ResponderEliminarBj
Claudia
me enche de orgulho ler as tuas histórias. beijão grande do teu irmão que mesmo longe, se sente sempre perto...mais um seguidor.
ResponderEliminarParabéns pela descrição pormenorizada, fotos excelentes , enfim , não esperava outra coisa de alguém tão especialista nas viagens como tu
ResponderEliminarSublime, o blog está excelente!